15 de julho de 2024
A informática é dita ser a ciência da informação. Nos dias de hoje, esta é primariamente veiculada por celulares. Como exemplo, alguns bancos deixaram de disponibilizar certos documentos para pessoa física (um deles sendo o extrato de benefícios do INSS, para fins de imposto de renda) através de computadores, limitando-lhes o acesso ao uso de apps. Isso reflete uma estimativa estatística de que o número de pessoas físicas que ainda utilizam computadores diminuiu sensivelmente.
Entretanto, é obviamente inaceitável exigir que todos usem celular, já que existem múltiplos motivos de não querer utilizá-lo, por exemplo, no meu caso, o reduzido campo visual. A resolução das Nações Unidas de 16 de novembro de 2001 exige o respeito dos direitos das minorias e é considerada um elemento chave da estabilidade dos Estados e da democracia; por conseguinte, uma imposição como a mencionada acima deve ser considerada como uma manifestação de totalitarismo. Voltaremos a essa questão a seguir.
Existe, ainda, um aspecto fundamental dos celulares que concerne a natureza da informação que veiculam.
O celular se tornou um espaço de comunicação entre os jovens, através de selfies e stories. Entretanto, como observa Eliette Abecassis em A vontade de crer, os stories são um abuso de linguagem, uma ausência de história. “Elas são consumidas em um fluxo regido por um mimetismo comunitário: mesmas pessoas, mesmas atitudes, mesmos hábitos, mesmos cortes de cabelo, onde quer que se esteja no mundo. Tornamo-nos idênticos”. Nesse sentido, a “informação” se torna idêntica à “ausência de informação”.
O tipo de “informação” mais relevante, em particular para a Universidade, é aquela capaz de promover, de alguma forma, uma elevação do espírito humano. Nas ciências (por exemplo em Física) o objetivo mais nobre é entender as leis da natureza, nas artes (por exemplo em literatura), o análogo é uma melhor compreensão da natureza humana e, na medida em que o homem é parte da natureza, os dois objetivos se confundem.
O celular contribui negativamente a esses objetivos, pois a atenção constantemente absorvida por esse dispositivo não permite nem mesmo a observação mais trivial da natureza, que é a do espaço físico real em que nos encontramos.
Um exemplo desse último fato tive eu ao observar durante uma hora: um par, mãe e filho, em uma sala de espera de um consultório médico. Ambos estavam ocupados com o celular, mas, ao contrário da mãe, o filho parecia executar o “movimento com o polegar” com enorme tédio e, periodicamente, dirigia o olhar à mãe. Entretanto, até a minha saída, esta última não desviou a atenção do aparelho, e dei-me conta de que a “informação”, inúmeras vezes solicitada pelo filho, se situava em nível mais alto, aquele dos relacionamentos humanos: um simples olhar. Outro exemplo de “informação” em nível mais elevado é a leitura de obras literárias, por exemplo de clássicos. Esse exemplo também se relaciona ao celular, desta vez como veículo de acesso mais frequente à internet.
No seu livro Notas sobre a morte da cultura, Mario Vargas Llosa se refere a um depoimento de um colega seu, o professor Joe O’Shea, filosofo na Universidade da Florida, que diz: “Sentar e percorrer um livro de cabo a rabo não faz sentido. Não constitui uma boa utilização do meu tempo, na medida em que posso obter toda a informação de que necessito mais rapidamente através da internet. Na medida em que você é um ‘caçador exímio’ on-line, livros são supérfluos”. Comenta Vargas Llosa a respeito: “O que é terrível nesta declaração não é a frase final, mas o fato de que este filosofo pensa que lemos livros para ‘obter informação’”!
Vimos que, no que concerne informações em nível mais elevado, os celulares acabam inibindo-as ou difundem ilusões sobre a sua natureza. No livro acima citado, Vargas Llosa atribui grande parte do declínio, talvez morte, da cultura, à internet. Sabemos que adquirir uma cultura é ter a possibilidade de fazer escolhas, de ampliar o julgamento e a reflexão e, portanto, desenvolver a personalidade. Por isso os regimes totalitários detestam a cultura, pois, quanto mais as pessoas são incultas, tanto melhor obedecem aos “slogans”, e tanto melhor se pode manipulá-las ou subjugá-las.
Hoje em dia, o papel dos “regimes totalitários” é, de certa forma, representado pelas empresas associadas à telecomunicação, que incluem desde bancos até as empresas de satélites, como Space X, de cujos satélites as trajetórias já chegam a ocultar a maioria das estrelas (desaparece o céu estrelado, veja as pesquisas de Arthur Firstenberg, presidente da Cellular Phone Task Force), pois, como vimos no caso dos jovens, elas manipulam, por motivos econômicos, os hábitos de consumo de uma imensa massa popular inculta, estendendo-se até, infelizmente, a toda a maneira de ser e pensar dessa faixa. Temos, assim, uma nova forma, implacável, de totalitarismo, que pode acabar, a longo prazo, com a natureza e com o homem.
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Fontes
editar- ((pt)) Walter Wreszinski. Celulares: totalitarismo e informação — Jornal da USP, 13 de julho de 2024
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