Turismo em zonas de guerra precisa ser consciente para preservar a memória histórica das vítimas
25 de maio de 2025

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Nas últimas décadas, o turismo tem se moldado a diferentes realidades, adaptando-se a cenários históricos instáveis e muitas vezes imprevisíveis. Um dos fenômenos mais paradoxais observados recentemente é o interesse crescente por viagens a zonas de guerra. Em meio a conflitos armados que forçam populações inteiras a se deslocar e reduzem cidades a escombros, um tipo específico de turista escolhe justamente esses destinos para visitar. A prática, embora crescente, exige questionamentos sobre a ética e as intenções dos visitantes desses destinos.
Segundo o doutor em Turismo Renan Augusto Moraes Conceição, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, esse fenômeno evidencia uma complexa ligação entre turismo, risco e memória. A viagem, tradicionalmente associada ao lazer, ao descanso e ao encantamento, passa a ser também uma experiência carregada de tensão, sentimentalidade e significado político.
- História e memória
Conforme o especialista, esse tipo de turismo, muitas vezes classificado como “turismo de guerra”, vem sendo impulsionado tanto por interesses históricos quanto pela espetacularização de eventos trágicos. Agências especializadas já oferecem pacotes voltados especificamente a esses destinos. Um exemplo notável é a cidade de Chernobyl, na Ucrânia, que passou a atrair visitantes após o sucesso da minissérie homônima.
Outro exemplo emblemático é Berlim, na Alemanha. A capital alemã tem investido fortemente na preservação e divulgação de sua história bélica, com museus, memoriais e passeios guiados que atraem turistas interessados na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria. Locais como o Muro de Berlim ou os campos de concentração nazistas, como Auschwitz, recebem milhares de visitantes por ano.
De acordo com Conceição, o interesse por esses destinos pode estar associado a uma busca por entendimento mais profundo dos acontecimentos históricos, ou ainda por uma forma de vivenciar a história de maneira mais sensível. “É uma tentativa de se aproximar de eventos traumáticos com o intuito de compreender, sentir e refletir sobre o passado”, afirma.
Controvérsias Entretanto, o pesquisador destaca que essa aproximação nem sempre é isenta de contradições. Quando o turismo se aproxima de conflitos ainda em curso, como é o caso das viagens organizadas para regiões como Rússia, Ucrânia, Israel ou Palestina, a motivação do turista e a narrativa construída sobre o local ganham contornos políticos e ideológicos mais explícitos.
A crítica central, nesse caso, gira em torno do risco de transformar a dor e o sofrimento de populações inteiras em objetos de consumo. Para o sociólogo John Urry, o turismo é, antes de tudo, uma forma de consumir lugares. Esse “olhar do turista” — como define Urry — é capaz de transformar até mesmo um cenário de destruição em produto turístico.
Em zonas de conflito, esse olhar adquire contornos ainda mais delicados. O perigo é que a experiência se torne superficial, guiada mais pela curiosidade ou adrenalina do que por um real desejo de compreensão histórica. Fotos, vídeos e postagens em redes sociais frequentemente podem reduzir esses espaços a cenários de espetáculo, esvaziando o contexto e a dor envolvidos.
- Efeito bélico
O filósofo francês Paul Virilio já alertava para os efeitos da guerra acelerada pela tecnologia da informação, que transforma o espaço geográfico em um campo de batalha contínuo. Essa ideia também se manifesta no turismo, quando o visitante se desloca para áreas de conflito movido pela atração ao risco e ao inusitado, mais do que pelo valor educativo ou memorial da experiência.
Para Conceição, é fundamental distinguir o turismo que promove a preservação da memória daquele que se apropria de tragédias como entretenimento. “Há uma linha tênue entre refletir sobre o passado e explorá-lo comercialmente. Quando essa linha é cruzada, há o risco de banalizar a violência”, alerta o pesquisador.
Ainda que controverso, o turismo em zonas de guerra também pode trazer benefícios. Em alguns casos, ele contribui para a economia local e fortalece iniciativas de preservação histórica. Ao visitar antigos campos de batalha ou locais de genocídio, muitos turistas entram em contato com aspectos dolorosos da história que dificilmente conheceriam apenas por livros.
A grande questão, no entanto, é o modo como essas visitas são organizadas e conduzidas. Para o pesquisador, é essencial o emprego de profissionais qualificados, roteiros educativos e contextos que respeitem a dor e a memória coletiva para que a experiência tenha valor mais profundo e responsável. “Como sociedade, resta a pergunta: estamos viajando para aprender com a história ou apenas para transformá-la em conteúdo passageiro e consumível? O turismo, ao mesmo tempo em que pode ser instrumento de consciência, também pode se tornar ferramenta de esquecimento”, alerta Renan Conceição.
Fontes
editar- ((pt)) Julio Silva. Turismo em zonas de guerra precisa ser consciente para preservar a memória histórica das vítimas — Jornal da USP, 23 de maio de 2025
Esta notícia é uma transcrição parcial ou total do Jornal da Universidade de São Paulo. Este texto pode ser utilizado desde que seja atribuído corretamente aos autores e ao sítio oficial. Veja os termos de uso (copyright) na página do Jornal da USP |