29 de outubro de 2024

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Há 65 milhões de anos, os dinossauros predominavam na paisagem terrestre, ocupando praticamente todas as regiões do globo. No entanto, destoando da supremacia exercida por aqueles gigantes durante o período Cretáceo, em uma área do Brasil conhecida como Bacia Bauru quem reinava eram os crocodiliformes. Esses parentes dos crocodilos e jacarés variavam quanto ao seu tamanho e aos seus hábitos, formando um grupo grande e diversificado. Para os pesquisadores, a história desses animais permanece cheia de lacunas, sendo a maior delas os motivos que fizeram com que se tornassem prevalentes em uma região tão específica.

Agora, pesquisadores da Unesp contribuíram para posicionar mais uma peça do quebra-cabeça paleontológico ao descrever uma nova espécie de crocodiliforme, apelidada de Epoidesuchus tavaresae. A descoberta, feita a partir da análise de fósseis encontrados nas proximidades da cidade de Catanduva, chama a atenção por se tratar de um indivíduo que, aparentemente, tinha hábitos aquáticos, em um cenário no qual a maior parte dos representantes de crocodiliformes eram terrestres. O trabalho foi publicado no artigo A new Peirosauridae (Crocodyliformes, Notosuchia) from the Adamantina Formation (Bauru Group, Late Cretaceous), with a revised phylogenetic analysis of Sebecia, na revista científica The Anatomical Record.

A pesquisa foi fruto do mestrado de Marcos V. L. Queiroz, sob orientação de Felipe Chinaglia Montefeltro, docente do Departamento de Biologia e Zootecnia da Unesp, campus de Ilha Solteira. “Nós podemos considerar que, dentro do grupo dos crocodiliformes, em alguns momentos houve essa transição para um hábito aquático e o Epoidesuchus tavaresae, é um dos representantes desse grupo”, diz o paleontólogo. “Existe a ideia de que os crocodilos nunca mudaram ao longo das eras. Algumas pessoas até se referem a eles como ‘fósseis vivos’. Mas isso não é correto. Esse entendimento das espécies de crocodiliformes, que habitavam a terra milhões de anos atrás, mostra como seus ancestrais eram diversos, e como apresentavam comportamentos distintos entre si”, completa Queiroz.

O nome escolhido dá pistas sobre a história do crocodilo ancestral: Catanduva é conhecida como “Cidade Feitiço”, e Epoidesuchus pode ser traduzido do grego antigo como “crocodilo mágico”. O tavaresae, por sua vez, foi colocado em homenagem a Sandra Tavares, paleontóloga do Museu de Paleontologia de Monte Alto “Prof. Antonio Celso de Arruda Campos”, onde os espécimes foram inicialmente depositados após sua descoberta.

Os Peirosauridae (lê-se “perosauride” ou “perosaurídeos”) foram um grupo de répteis pré-históricos que viveram durante o período Cretáceo, há mais de 65 milhões de anos. Esses animais eram parentes antigos dos crocodilos modernos, mas tinham uma aparência bastante diferente, com crânios que lembravam os de cachorros. Ao contrário dos crocodilos que conhecemos hoje, que viviam em ambientes aquáticos, os Peirosauridae eram, em sua maioria, caçadores terrestres e habitavam regiões que faziam parte do supercontinente Gondwana, incluindo o que hoje é a América do Sul.

Entretanto, apesar dos hábitos predominantemente terrestres, restos fósseis indicam que, na história dessa família, algumas espécies desenvolveram características específicas de hábitos aquáticos. Esse é o caso do Epoidesuchus tavaresae que, dentre outras coisas, apresentava uma mandíbula longa, diferente do formato característico de cachorro e mais semelhante aos crocodilos atuais.

Essa foi uma das principais pistas que levaram os pesquisadores a acreditarem que se tratava de uma nova espécie. Queiroz explica que, no estudo de crocodiliformes, o crânio, a mandíbula e os dentes são os principais materiais de análise, utilizados para determinar se os restos fósseis encontrados são uma nova espécie ou não. O trabalho de identificação, entretanto, é árduo, uma vez que raramente são encontrados fósseis inteiros ou mesmo pedaços completos dos esqueletos. Para a análise do Epoidesuchus, o grupo contou, basicamente, com uma parte superior do crânio, parte do focinho e da mandíbula. “A mandíbula é a parte mais bem preservada, então ficou óbvio que ela era bem comprida, o que nos permite tecer de imediato algumas informações sobre o espécime”, diz Montefeltro.

O grupo observou, a seguir, detalhes morfológicos e anatômicos, como o número de dentes, o ângulo de abertura da mandíbula e a estrutura do crânio, dentre outros aspectos, para estabelecer comparações com dados de espécies já conhecidas. “Até a nossa pesquisa, esse material não tinha recebido muita atenção. Ele foi brevemente descrito há alguns anos atrás e classificado como sendo da espécie Pepesuchus, outro grupo de Peirosauridae, também de hábitos aquáticos”, relata Queiroz.

Entretanto, ao observar detalhadamente o material, o grupo encontrou características distintas daquelas observadas no Pepesuchus, e passou a imaginar que, de fato, poderia se tratar de uma espécie ainda não descrita. “O Pepesuchus tinha ornamentos na parte superior do crânio, o que não foi observado no material que estávamos analisando. E a mandíbula do Epoidesuchus apresenta um tamanho 50% maior do que a de outras espécies conhecidas. Além disso, também havia diferenças importantes na junção do crânio com a mandíbula e na distância entre as órbitas e a fenestra anterorbital, que é uma cavidade próxima à narina”, diz.

“Na paleontologia, novas espécies sempre são uma hipótese. É uma discussão que não ocorre de um dia para o outro, Muitas vezes, leva décadas até que outra pessoa reanalise algum material, ou que surja um novo registro fóssil que lance luz sobre alguma questão em aberto. É uma discussão científica, que se desenvolve até que as pessoas se convençam de que estamos falando de uma espécie diferenciada”, explica Montefeltro.

Essa discussão se reflete no fato de, apenas recentemente, ter sido aceito que os Peirosauridae contavam com grupos de animais terrestres e, também, animais aquáticos. Parte disso se deve às dificuldades de trabalhar com os crocodiliformes de hábitos aquáticos, já que a grande parte das espécies conta com poucos pedaços de fósseis. Também existem dificuldades no acesso aos materiais, além do fato de que grande parte desses indivíduos estavam confinados à América do Sul, especialmente ao Brasil.

Embora os Peirosauridae sejam conhecidos desde a década de 1950, os primeiros representantes aquáticos foram os Pepesuchus, descritos apenas em 2011. A espécie foi apelidada em homenagem póstuma ao geógrafo e paleontólogo José Martin Suárez (cujo apelido era Pepe), que foi professor do departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente, por 41 anos. Alguns dos principais fósseis de Pepesuchus foram encontrados em 2003, em um sítio paleontológico próximo de Presidente Prudente, batizado de “Tartaruguito” por conter dezenas de fósseis de uma tartaruga pré-histórica, a Bauruemys elegans. Em um evento raro, o espécime de Pepesuchus encontrado contava com o esqueleto praticamente completo, com partes essenciais para seu estudo, como o crânio e a mandíbula. Os achados foram doados para o Museu Nacional que abrigava os principais registros fósseis dessa nova espécie até o megaincêndio de 2018 que, dentre incontáveis perdas, destruiu todas as coleções de fósseis de Pepesuchus.

“O Pepesuchus foi a primeira espécie a dar pistas de que existia um grupo com uma ecologia diferenciada dentre os Peirosauridae. Os melhores espécimes estavam no Museu Nacional e, infelizmente, foram perdidos no incêndio”, relata Montefeltro. Nesse contexto, o paleontólogo vê com alegria a descrição da nova espécie de Epoidesuchus tavaresae, pois acredita que as informações contidas em seus fósseis podem auxiliar a compreender um pouco mais sobre o comportamento e a ecologia desse grupo de seres de hábitos aquáticos.

“A gente ainda está tentando navegar nas informações que temos para reconstruir qual era o cenário da Bacia Bauru durante o Cretáceo”, diz Montefeltro. Uma das principais perguntas a serem respondidas dentro desse campo é o porquê de os crocodiliformes terem sido dominantes apenas em uma região tão específica. “Por isso novas espécies são tão importantes, porque constituem uma peça a mais que colocamos no quebra-cabeça”, diz.

Queiroz defende que o aprofundamento da compreensão das interações ecológicas que ocorreram no passado permite traçar paralelos com o que acontece hoje, e refletir sobre os processos que levam à extinção de espécies. “Os paleontólogos veem a extinção como algo natural, pois é a alma da paleontologia. No entanto, neste momento estamos enfrentando a possibilidade de uma sexta extinção em massa, e observando uma série de mudanças acontecendo em um intervalo de tempo muito curto”, diz o jovem pesquisador. “Acredito que o estudo do passado e a observação das mudanças que levaram a extinções naquele momento pode trazer reflexões sobre o que está acontecendo hoje”, diz.

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